#incipitBrasil NOITE DENTRO DA NOITE Joca Reiners Terron

"Medianeira, Paraná, princípio do inverno de 1975: seu acidente foi naquela quinta-feira, disse Curt Meyer-Clason, na manhã do dia dezessete. Com a cara tapada no muro, o pegador contava de zero a cinquenta, enquanto outros se dispersavam e você corria pela escola na tentativa de se esconder. A longa arcada que circulava o pátio em um cinturão estava em obras e seu corpo varava áreas iluminadas pelo sol e obscurecidas pela sombra e você era mais rápido que uma locomotiva e mais alto e forte que uma montanha e seus pulos ultrapassavam poças de chuva tão largas quanto oceanos, então você não viu a coluna que no dia anterior não estava ali. Saindo das nuvens, o sol fez um arco veloz, bateu palmas e desapareceu na escuridão. Acertou a nuca com força no concreto ainda fresco, cercado por tapumes. Teve convulsões e mordeu a língua. Seu calcanhar esquerdo cravou no cimento como a ponta seca de um compasso que hesitasse em girar no mapa, o pé direito chutou loucamente o vazio, parando apenas ao apontar a lua meio apagada no céu e você ser socorrido. Naquele esconde-esconde, a rata sempre lhe dizia, você foi o único a não ser encontrado. Na manhã daquele dia você deixou de ser você e passou a ser outra pessoa. Com a dentada sua língua ficou bífida como ferrão de aranha, a língua de uma serpente. Uma voz amputada. Alguém contou a você, alguém de quem você não se lembra mais, que depois que se sente, o gosto de sangue nunca sai da boca. Quem lhe disse isso sabia como ninguém. Aquele foi o começo do Ano do Grande Branco."

Companhia ds Letras, 2017, São Paulo, 464 páginas.

Da 4a capa: Joca Reiners Terron nasceu em Cuiabá, em 1968, e vive em São Paulo. Foi editor da Ciência do Acidente. É autor de Sonho Interrompido por Guilhotina,  vencedor do prêmio Machado de Assis por Do Fundo do Poço se Vê a Lua, entre outros livros.

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