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Mostrando postagens de maio, 2018

#IncipitBrasil ÍRISZ: as orquídeas Noemi Jaffe

"Eu precisaria estar tonto ou ser mais parecido com ela para ficar escrevendo sobre o que não sei. Precisaria começar a chorar e não sei mais. A palavra que explica a falta que ela me faz está presa no dicionário e não sei tirá-la de lá, porque preciso de Írisz para me ensinar. Releio o que escrevo e já não sei mais se faz sentido. Talvez seja bonito, talvez eu tenha aprendido com ela a transformar em metáfora tudo o que vejo. Se for bonito, a beleza não é minha -- é dela. Achei que indo muito longe, falando de um jeito tão diferente do meu, eu ficaria mais próximo de uma forma de pensar e de falar que vem da morte, mas que por isso mesmo está mais perto da vida. Ela não quer mais saber da dor, porque a conhece pelo nome, já conversou com ela. Minha perda é teórica, e deve ser por isso que minha fala é mais sombria. Eu fico aqui, com minha dor intelectual, tentando imitá-la e só o que consigo escrever são palavras mornas." Companhia das Letras, 2015, 222 páginas. Da 4a c

#incipitBrasil NOITE DENTRO DA NOITE Joca Reiners Terron

"Medianeira, Paraná, princípio do inverno de 1975: seu acidente foi naquela quinta-feira, disse Curt Meyer-Clason, na manhã do dia dezessete. Com a cara tapada no muro, o pegador contava de zero a cinquenta, enquanto outros se dispersavam e você corria pela escola na tentativa de se esconder. A longa arcada que circulava o pátio em um cinturão estava em obras e seu corpo varava áreas iluminadas pelo sol e obscurecidas pela sombra e você era mais rápido que uma locomotiva e mais alto e forte que uma montanha e seus pulos ultrapassavam poças de chuva tão largas quanto oceanos, então você não viu a coluna que no dia anterior não estava ali. Saindo das nuvens, o sol fez um arco veloz, bateu palmas e desapareceu na escuridão. Acertou a nuca com força no concreto ainda fresco, cercado por tapumes. Teve convulsões e mordeu a língua. Seu calcanhar esquerdo cravou no cimento como a ponta seca de um compasso que hesitasse em girar no mapa, o pé direito chutou loucamente o vazio, parando ape

#incipitBrasil O ARROZ DE PALMA Francisco Azevedo

TRECHO INICIAL DO LIVRO  " Eu aqui na fazenda. Eu aqui na cozinha, quatro e pouco da manhã. Isabel ainda dorme, o sol ainda demora. Eu aqui, um velho de 88 anos. Para os mais novos, o Avô Eterno, o que não teve começo e nem terá fim. O que já veio ao mundo com esta cara enrugada. Eu aqui, de avental branco, picando o tempero verde. Preparo o almoço de família. Terei forças? 88: dois infinitos verticais. É boa idade, será uma bela festa. Tenho prática. Tia Palma me ensinou a cozinhar, eu era jovem. Por onde andará Tia Palma? Às vezes, fica tempo sem aparecer. Às vezes, vejo-a perambulando pela casa com mamãe e papai e nem preciso dos óculos. Chegam com diferentes idades, alegres ou preocupados, falantes ou silenciosos. Depende do dia, da hora em que os vejo." Record, 2011, Rio de Janeiro, 364 páginas. Da orelha: "Antonio, aos 88 anos, está preparando o almoço que será servido à família, finalmente reunida após muito tempo. Enquanto combina os ingredientes, vão se mist

#IncipitBrasil ESAÚ e JACÓ Machado de Assis

“Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castelo. Começaram a subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá por os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo.” Esaú e Jacó, Machado de Assis, W. M. Jackson Inc Editores, 1961, São Paulo, 454 páginas. Lançado em 1904, livro da maturidade literária de Machado de Assis e o seguinte a ser lançado após Dom Casmurro (1899). 

#IncipitBrasil O FANTASMA DE LOUIS BUÑUEL Maria José Silveira

"Porra. A navalha cortando aquele olho em dois, como se fosse um ovo cozido meio mole, cara. Aquilo não me sai da cabeça." O FANTASMA DE LOUIS BUÑUEL  Maria José Silveira, Francis, São Paulo, 2004. Trecho da 4a capa: "Neste romance da premiada autora Maria José Silveira, o regime político autoritário e repressivo funciona como um serial killer que provoca o combate e, mais tarde, a fuga. Perder a juventude nesse ambiente é uma experiência cheia de terror, mas a convivência de um grupo de pessoas identificadas por aspirações comuns e pela paixão pelo cinema serve de antídoto a essa vivência hostil."

#IncipitBrasil Descobri que estava morto J.P.Cuenca

"Descobri que estava morto enquanto tentava escrever um livro.  Ainda não era este livro. Eu morava com minha mulher num apartamento de fundos, dois andares acima de um restaurante. Seus funcionários costumavam se reunir num pátio no térreo, naquele espaço interno em que as construções do quarteirão formam um poliedro de intimidade devassada. Ali eles comiam, fumavam, usavam o telefone, jogavam conversa fora. Suas palavras atravessavam as paredes da minha casa. Era como compartilhar o Inferno de Strindberg e ouvir as vozes que o perseguiam em hotéis baratos na Paris do crepúsculo do século XX. Mas aquilo era o Rio de Janeiro e, diferente do escritor sueco, eu não estava louco." Trecho da 4a capa: "Em 2011, J.P.Cuenca recebeu a notícia de que um cadáver fora identificado pela polícia com sua certidão de nascimento. Este livro autobiográfico é uma investigação do fato."